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terça-feira, 5 de abril de 2011

O feminino em Duchamp: Étant donnés e o erotismo na arte

  1. Erotismo na arte
“O erotismo é na consciência do homem aquilo que põe nele o ser em questão.” (BATAILLE, 1987, p.27)
Falar do erotismo é falar do homem, o erotismo só pode ser objeto de estudo se o homem for abordado.
O homem separa-se da animalidade, através do trabalho, da consciência da morte e conseqüentemente a passagem da sexualidade livre à sexualidade envergonhada, onde nasce o erotismo.
            O olhar sobre o erotismo não se dirige em verdades ou definições, o que já foi proclamado em outras épocas como obscenidades, se tornaram clássicos. Com Olympia (ilustração1), Manet escandalizou o público quando a obra participou do Salão de 1865.  A figura feminina encara o espectador.
Esta obra de Manet, inicialmente pelos críticos da época, foi vista como uma obscenidade, para depois ser considerado um marco para o modernismo, por sua planaridade da superfície, característica da pintura modernista. O artista utilizou de elementos da pintura clássica, mas abriu as portas para o novo.  Olympia é a abertura para a trajetória dos impressionistas e a ruptura estética que aconteceu na segunda metade do século XIX.
                                                                      

Definir o erotismo não é a questão, ele está ligado com o que há na sociedade e como se vê o erótico.
O erotismo está em todos, é invisível e sutil, mas não é fácil desvendar e tão pouco reduzir-lo a sexualidade. A representação erótica não traz o sexo como objeto central e pode mesmo nem mostrá-lo, como na representação pornográfica que o excesso visual gera o tédio e a saturação, conseqüentemente o desinteresse. O erotismo envolve o espectador e a imagem lança o desejo para além daquilo que se vê.
Falar do erótico implica na abordagem do pornográfico. A representação pornográfica apresenta o corpo como um fetiche e o sexo como função autônoma, gerando a neutralização da sedução. A representação do erotismo, através de cenas sexuais ou o desnudamento proporciona o “mostrar” e o “ver” que identifica o erotismo com a obscenidade. O corpo exibido absorve o fetiche que o caracteriza como mercadoria. Quanto mais explicito, menos se alcança a significação da experiência erótica. 
No processo intelectual e imaginário há uma tênue diferença entre o erotismo e a pornografia. O erotismo como estetização de uma função e a pornografia como um processo fora.
Desde a antiguidade, a representação do corpo na arte tem o seu destaque. A figura feminina nua, encontrada no período paleolítico, Vênus de Willendorf tem indicações que a imagem seria um emblema de veneração da sexualidade feminina, da fertilidade e abundância, executada de modo esquemático por suas formas arredondadas, acentua as diferenças entre a representação do feminino na arte grega.
            No período da Idade Média, o enfoque da representação do corpo é simbólico. Já no Renascimento, é possível perceber o retorno da influência grega e a preocupação mais realista.
          Com a obra Banho de Sheba (ilustração 2), do artista Paul Cézanne, considerado o pai da modernidade, verificamos suas pinceladas que apresentam dinamismo entre as  figuras e o fundo. Formas e figuras se diluem, acentuando o aspecto impressionista, de pinceladas soltas. O nu feminino está reclinado e não atende a uma representação anatômica e pictórica tradicional.  O artista utiliza com freqüência traços de azuis, verdes e amarelos, numa demonstração de domínio pictórico.

             Tanto Moreau como Odilon Redon, apresentam as figuras femininas com um simbolismo fantasmagórico e revelam a visão da mulher como criatura misteriosa e ameaçadora. Redon com a obra O Ciclope (ilustração 3) apresenta o nu feminino reclinado como uma mulher que aparentemente dorme desapercebida do perigo do gigante Ciclope que emerge ameaçador de trás da montanha. O artista trabalha com um mundo interior imaginário e também se inspirava na ciência.
A partir do surrealismo com Magritte, Dali, Man Ray, Max Ernest, a imagem da mulher transita de ídolo a inimiga.
A mulher é vista como uma musa que pode conduzir o artista até a criatividade artística. Amantes, amigas, artistas. O surrealismo, ao mesmo tempo apoiava as mulheres também explorava.
O uso de manequins é uma das características do movimento, representando a mulher como musa, mas também como algo manipulável. Presença imagética dos artistas surrealistas, o manequim sem cabeça representava a imagem da mulher criativa, livre de restrições da racionalidade. Outra relação é a aparência de boneca, a feminilidade adolescente, a ninfeta.
Simbolicamente a mulher representada no surrealismo é o foco do sonho masculino, tornando-se objeto de desejo e símbolo do desejo, muitas vezes próxima da loucura, do inconsciente.
O inconsciente como dimensão estética, portanto como dimensão da arte, sendo esta a comunicação do individuo por símbolos, não mais pela representação.
            Duchamp negava as influências da História da Arte em seu processo criativo, mas para negar, é necessário saber o que está negando. O nu era um tema recorrente ao artista, mas o seu enfoque era o mecânico, diferindo do nu clássico. Com Étant donnés, nu feminino reclinado é materializado, não temos a representação pictórica, mas a presença da matéria, o simulacro. É uma obra única.
 O nu feminino reclinado sempre esteve presente como tema da Arte. Os cenários, musas e contexto variam, mas continuam inseridos na temática do corpo, da mitologia ou do erotismo. Duchamp apresenta este como um objeto construído e também como imagem, algo inédito para o meio artístico.



  1. Étant donnés, objeto e imagem

           Quem visita o Museu de Arte da Filadélfia, encontra uma porta de madeira antiga, há um par de orifícios pelo qual o espectador pode ver um cenário construído. A cena encontrada é de um muro arruinado com um buraco e a paisagem que pode ser apreciada, é de um corpo feminino nu reclinado num leito de gravetos e folhas secas. Este corpo é fragmentado, não é possível ver o rosto, apenas suas pernas que estão escancaradas e sua mão estendida segura uma lamparina a gás acesa. A região pubiana é desprovida de pêlo. Há um indício de cabelo loiro, mas a cabeça está oculta. Há uma representação de cascata inserida numa paisagem campestre. 
           Vinte anos na elaboração da obra, cada peça como engrenagem faz parte de uma grande máquina, agora não mais representada por desenhos mecânicos. O cenário é pitoresco, a paisagem com a cascata como um trompe-l’oeil; o acúmulo de materiais: a lamparina, folhas e gravetos, como assemblage; a montagem do corpo estendido e a paisagem de fundo, como uma instalação; uma porta velha arrematada por uma moldura de tijolos (elemento fundamental que possibilita a visão do cenário), a imagem fixa de uma cena em perspectiva captada no instante extraído de um acontecimento, como uma câmara escura.
  É atribuído a Étant donnés, associações com o Grande Vidro (uma das obras mais estudadas de Duchamp), por seu título coincidir com anotações encontradas na Caixa Verde (obra feita de anotações sobre o Grande Vidro), tornando-a ainda mais enigmática.
     O que o artista pretendia com esta obra que contradiz tudo o que ele havia criado anteriormente?
     O espectador não pode circular em torno dela, há somente um ponto de vista e fixo para poder ver um cenário totalmente figurativo e retiniano.
                 A construção de uma contradição: Étant donnés, a representação da noiva materializada e imóvel em contraste com a representação da noiva mecanizada.
                 O erotismo escancarado em contraponto com o erotismo subjacente. A diferença de “contemplação” entre as obras: Grande Vidro (ilustração 7) que com sua transparência intriga por sua representação mecânica, não há volumes. O vidro, o metal e a claridade, apresentam uma obra fria e distante, e a complexidade intrínseca dos personagens. Étant donnés, o silêncio e a escuridão que há no anexo da sala Rrose Selavy (sala destinada às obras de Duchamp, no museu da Filadélfia) propiciam ao espectador um cenário de suspense e reserva. Uma obra exposta abertamente, que é um enigma. A outra exposta secretamente, que é uma aparição.


3. Étant donnés e o erotismo

“Primeiramente, o erotismo difere da sexualidade dos animais no ponto em que a sexualidade humana é limitada por interditos, cuja transgressão pertence ao campo do erotismo. O desejo do erotismo é o desejo que triunfa do interdito.” (BATAILLE,1987, p. 238)

A porta, no Etant donnés é o interdito. O espectador ao espiar pelos furos, participa como “voyeur”, transgride. Alguém que esta de fora, que não pertencem àquela cena erótica.

“A transgressão não é a negação do interdito, mas o ultrapassa e o completa...o interdito existe para ser violado.”(BATAILLE, 1987,p. 59)

  O corpo da mulher meio matéria, meio espírito. A mulher liberta tem a sexualidade e o prazer legitimados e a sensação que cada parte do corpo proporciona. O feminino está para além da meia sensação que não se reduz à vagina-clitóris. A mulher goza em seu corpo e para além dele. Evocando uma linguagem que nem sempre os homens entendem. Esta linguagem vai além da mecânica dos corpos, presente no Grande Vidro.
Há também em Etant donnés, a perversidade , o fragmento do corpo com aparência de manequim, já utilizado pelos surrealistas indica o corpo feminino com algo manuseável, como as Bonecas (ilustração 8 e 9) de Hans Bellmer desmontável, transformável à vontade, que já no inicio dos anos 30 fizeram entrar na arte o seria chamado de mulher-objeto. O mesmo enfoque de mulher –objeto, Warhol irá utilizar com as serigrafias de Marilyn e Allen Jones em 1969, com a imagem da mulher-escrava : mulher-mesa, mulher poltrona, mulher-cadeira
Nas obras de Duchamp, há elementos que se repetem, que participam de um emaranhado de pensamentos, idéias e suposições.
Ambigüidade entre o feminino e masculino, presentes nas obras, Grande Vidro e Étant donnés : a água, o gás, a noiva e a testemunha.
  • Água: representa o feminino, o líquido que lubrifica (a gasolina erótica) e possibilita o gozo da Noiva, como também a água que é cascata que jorra como uma ejaculação que espalha sobre a terra, fértil como uma fêmea.
A Via Láctea reforça a ambigüidade dos signos feminino/masculino. Ela é a nuvem, o desejo da Noiva, estado gasoso que passará para o líquido após o desnudamento, neste processo o desejo, que é uma abstração, algo que não é concreto, mas é anseio, possibilitam a transição do ar para água, que é a imaginação erótica que produz medos, fantasmas.
A cascata é visível no Étant donnés, como elemento masculino com a queda d’água. No Grande Vidro, não há representação da cascata, ela está invisível funcionando através do repuxo de água que vem por cima dos moldes machos, responsável pelo movimento do Moinho de água.

  • Gás: é ar, também é luz e fogo.
O gás de iluminação ou lampião no Étant donnés, apresenta a Noiva segurando-o com a mão esquerda, objeto fálico. Celibatários não estão lá e o lampião pode ser um indício de sua presença ou apenas a representação do desejo presente da Noiva em ser desnudada, desejada ou mesmo ser desposada.
O desejo da Noiva aceso e presente em forma de lampião, pode ser uma leitura sobre o feminino aliado a significação do “ar que saí dos orifícios sexo e boca do arquétipo da grande mãe junguiana: a vasilha”.(PAZ, 1977, p.76)
No Grande Vidro, o gás acentua as características do masculino, os Celibatários inflam e posteriormente transforma-os em fogo líquido ou explosivo. É invisível.
  • Noiva: personagem criado por Duchamp, é como a rainha, peça importante no xadrez, que dá o xeque mate no jogo entre obra e espectador. No Grande Vidro, ela é a vespa-motor. No Étant donnés, é a mulher materializada.
O enigma não é decifrado com a obra Étant donnés, o artista torna visível para o espectador o ato mecânico-erótico do ritual, mas ainda não fica claro o que o corpo feminino nu representa naquele instante, segurando o lampião e com as pernas estendidas.
A Noiva do Grande Vidro possui um liquido que não é água, esta substancia é responsável pela lubrificação como uma gasolina erótica, que é a essência para o orgasmo da personagem. No Grande Vidro, o espectador tem que imaginar o ritual erótico descrito na Caixa Verde, em Étant donnés o ritual já aconteceu e o espectador participa da plenitude do gozo da Noiva.
  •            Testemunha Ocular: em Étant donnés, o espectador é colocado como testemunha que também desempenha o papel de voyeur.
O espectador é fundamental para a obra Étant donnés, pois ela é destinada a ele e só existe se houver o voyerista, que participa e faz parte do espetáculo. É inserido e transforma-se em participante no momento que se coloca diante da obra, ao espiar o espectador faz parte da obra.
 
Referências

ADES, Dawn, COX, Neil. HOPKINS, David. Marcel Duchamp. New York.  Thames and Hudson, 1999.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo. Companhia das Letras, 2004.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. São Paulo: Editora Perspectiva. 1987.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005.


HONNEF, Klaus. Arte Contemporânea. Taschen, 1992.

HENDERSON, Linda Dalrymple. Duchamp in context. New Jersey: Princeton, 1998.

PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou Castelo da Pureza. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.


TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo: Cosac Naify Edições, 2004.




  Ilustração 1: Olympia (1863)
  Óleo s/tela 130x190 Edouard Manet


Ilustração 2: Banho de Sheba (1875-77)
Óleo s/tela 29 x 125 Paul Cézanne


Ilustração 6: Étant donnés – visto por trás
(Étant donnés) 1966 - Marcel Duchamp.


Ilustração 7: A noiva despida por seus celibatários, mesmo ou O Grande Vidro (The Bride Stripped Bare By Her Bachelors, Even ou The Large Glass) 1915-1923 - Marcel Duchamp.

 Bonecas (1938) (ilustração 8 e 9)
Manequim s/ gravetos Hans Bellmer


Ilustração 3: O Ciclope (1914) Óleo s/tela Odilon Redon.
 Ilustração 4: Galatea (1896) Óleo e tempera em papelão Gustave Moreau



Ilustração 5: Obra Étant donnés: 1.º La chute d´eau, 2.º Le gaz d´éclairage  (1946-1966) - Marcel Duchamp     
                   (Dados 1.º A Queda de Água, 2.º O Gás de Iluminação)





segunda-feira, 4 de abril de 2011

"O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos..." Deleuze e Guattari